Sobre Cartas.





Hoje ninguém escreve mais cartas. Coisa obsoleta, ultrapassada. Pra quê cartas quando se pode enviar um recado no facebook ou mandar um twitter?  Quando a correria do dia-a-dia e o caos desse mundo cão mal nos deixa respirar?
Quem nunca escreveu uma carta?   Quem nunca sequer deixou um recadinho para a menina  da 5ª série que gostava ? Quem nunca escreveu uma cartinha derretida com juras de amor eterno e com toda a intensidade da adolescência? 
As Cartas serviam para me deixar comigo-mesma. Afastada de tudo e de todos, escrevia para amainar a solidão tão minha, para compartilhar um pouquinho da  vida com aqueles que amava.
Há cartas que escrevemos demoradamente, de tão demora que às vezes é a saudade.  Nessas, geralmente materializamos as vibrações das últimas poesias lidas, dos sonhos que parecem tão palpáveis. E o simples fato de escrevê-las diminui a distância – dos amigos e de nós mesmos.
E as cartas  de amor?    Para o Fernando Pessoa, todas as cartas de amor são ridículas - ridículo que ele deixa claro em suas cartas endereçadas à Ofélia, sua namorada.  Não concordo totalmente.  Penso que o belo está em todo sentimento, seja ele derramado ou não...
 Ao lembrar da Ofélia de Fernando, me vem à memória outra Ofélia e, um trecho  lindo de uma carta escrita para a Ofélia do príncipe da Dinamarca : “Duvida do brilho da estrela e até do perfume da flor, duvida de toda a verdade,  mas nunca do meu amor..."  Muito romântico, eu sei , talvez, ridículo para o  nosso mundo tão desacreditado e caótico...
 Ah..Cartas!  Açucaradas ou não, sempre trazem em si uma pitada de afeto!
 Porém , as que mais em impressionam são as cartas trocadas entre escritores. A começar pelas cartas do João Cabral.  É notável em suas  cartas o livre exercício da intelectualidade, suas impressões voltadas à  pintura,  literatura, política, à arte em geral .  Mas apesar do João ter sido  um cara contido e ter passado a vida afirmando sua 'racionalidade’,  não falta em suas correspondências a admiração e o apreço pelos amigos. Numa de suas cartas ao Manuel Bandeira, dá até para perceber certa mágoa diante da ausência inexplicável do amigo Carlos Drummond :  “ E o Carlos Drummond, depois de mais de um ano de minha saída do Rio, nunca encontrou um minuto para me responder. Confesso que esse procedimento, da parte dele, que sempre tive por meu amigo, me espanta.”
É..quanta intimidade pode estar  presente numas mal traçadas linhas, não? 
 A troca de cartas entre escritores parece-me ser uma prática frequente – ainda bem!   Pois assim podemos ter acesso à fonte riquíssima de conhecimentos e experiências daqueles que mais admiramos.  De fato, acho a literatura epistolar fascinante. Traz  a intimidade contida em cada letra e muitas vezes, quem a escreve, não é apenas um autor, mas um leitor em potencial, que diante da tinta e do papel deixa suas reflexões e seu olhar sobre a vida.
Prova disso são as cartas do Rainer Rilke, que desvelam toda a riqueza de seu pensamento e a beleza de sua prosa.  As nuances e os questionamentos da vida são belamente retratadas  em algumas páginas :

“...o amor é por muito tempo , ao longo da vida, solidão, isolamento profundo e intenso para quem ama. A princípio o amor não é nada que se chama ser absorvido, entregar-se e unir-se com uma outra pessoa (...) O amor constitui uma oportunidade sublime para o individuo  amadurecer, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de uma outra pessoa (...)  [Cartas a um jovem poeta]”

“Ah, contamos os anos e fazemos cortes aqui e ali e paramos e começamos e hesitamos entre essas opções. Mas quão inteiriço é tudo que nos sucede, e como tem parentesco uma coisa com outra, gerou a si mesma e cresce e é criada para se tornar ela mesma; e temos, no fundo, apenas que estar aí, mas simplesmente, mas insistentemente, tal como a Terra está aí, dizendo sim às estações, clara e escura e totalmente no espaço, não desejando repousar senão na rede de influências e forças onde as estrelas se sentem seguras.”

–Rainer Maria Rilke (19 de outubro de 1907, carta para Clara Rilke)

As Cartas do Fernando Sabino também são de encher os olhos:

Rio de Janeiro, 27 de outubro de 1953
Clarice,
Gostei de saber que você está com a alma mais sossegada. O sentimento de grandeza que você acha que está perdendo talvez agora é que você esteja adquirindo. Sua predisposição para ficar calada não é propriamente uma novidade: a novidade é estar aceitando, inclusive, o silêncio. É bom isso, dá mais paciência, mais compreensão, dá mais sentimento às coisas — e dá grandeza.

Fernando.
(Carta de Fernando Sabino para Clarice Lispector)

 Silêncio.. Como dizia o Guimarães Rosa, "O silêncio é a gente mesmo, demais”.  Talvez, escrever cartas  seja  o momento em que somos  ‘a gente demais’ também, com  a diferença que esse momento é compartilhado com pessoas queridas.
Apesar de viver no mundo dos caracteres limitados, em que a comunicação avança cada vez mais e o relacionamento humano anda em pleno declínio, sou da geração que escreve cartas.  Escrever é sempre um desafio. E pra quê desafio melhor do que desafiar a si mesmo?  É nas poucas linhas endereçadas a um amigo que às vezes vamos ao encontro  de nós mesmos. Infelizmente, hoje em dia dedicamos um bom  tempo em frente a um aparelho de TV e achamos que escrever uma carta seja algo ultrapassado.    De pouco em pouco, estamos perdendo algumas sabedorias e o livre exercício de pensar... 

Comentários

  1. Putz a Pandora ía se deleitar com esse post. ela é fã do Pessoa e desses outros autores q vc citou. Eu escrevo cartas de vez em quando. Tenho amigos morando a grandes distâncias, e posso dizer que carta é mil vezes melhor q o facebook. vc tem contato com o seu íntimo, no "feice" vc ta sempre pensando na reação dos outros.

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    1. È exatamente isso , Alê. Parece que ninguém está livre da exposição do feice né? até os mais sensatos... Mas escrever carta é isso : ter intimidade consigo mesmo. rs

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